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Ebó pós-tudo

Diante dos olhos da mulher que escuta está o que ela procurou a vida inteira: o consciente-inconsciente percebido no transe, no invisível que escorre por entre os dedos e banha o seu corpo libertário: o viés do sagrado em um país profano, o Brasil, terra iluminada pela alegria e pela perversidade, onde, a cada 23 minutos, um jovem negro é assassinado. Diante dos seus olhos, a mulher escuta o som dos atabaques de origem banto e nagô, a cerimônia que definiria os destinos da sua presença desde sempre ancestral.

Alguma coisa concreta que, em tempos passados, uniu a sua mão à mão da sua Madrinha, quando aquela outra mulher, definitiva para a sua compreensão artística e religiosa, a levava para as festas de São Cosme e São Damião, os Erês, e ela, em plena infância e diante de um desconhecido silêncio, ouviu para nunca mais esquecer os Alabês assentarem suas mãos sobre os atabaques. E então o mundo dos deuses e dos orixás estariam unidos para sempre dentro do seu Orí, o cérebro da individualidade do sujeito, guia dos filhos e filhas de santo na jornada do seu Ayê. Denise Camargo nunca mais estaria sozinha.

E o silêncio nagô calou em mim trata disso: desse silêncio profundo diante do desconhecido, “do tutano da palavra sagrada”, do que poderá ir do ontem ao muito além, de um corpo índio, africano, mestiço que temos obrigação em reconhecer sem ter medo de possuir as coisas que nos pertencem (o transe, o fundamento, o sacrifício, o azougue, a passagem), diante e por dentro desse mesmo país onde vivemos e que insiste em não perceber sua verdadeira identidade: Odùduwà abre os caminhos para Okán.

E segue adiante, esse silêncio nagô, em direção aos sentimentos que nos pertencem, ao que temos direito, ao que somos nós. Segue adiante na força dos que assumem o próprio rosto, a própria identidade, sem cair na armadilha de modelos identitários politicamente corretos importados de um “primeiro mundo” sempre em guerra. Segue adiante no corpo e na alma dos que possuem uma humanidade distinta, uma protocélula impregnada de mitos que vêm de um passado futurista, e cantam e dançam fincados em nossa raiz + terra + fogo + água + ar e na memória dos que têm certeza de que cicatrizes não se transferem.