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Ninguém é o mesmo depois desse silêncio

Era longa a ladeira que dava na catedral. Sempre que estivéssemos ali iríamos às missas que eu nunca entendi bem. Era o passeio. E que cansaço me dava aquilo. Chegando a casa, depois das férias de final de ano, a rotina era a mesma mas as ruas, planas. Todos os domingos. E o padre nos visitava. Ficavam na cozinha, à mesa vermelha onde era o lugar das conversas sérias, adultas, talvez. E era estranho, depois, confessar pecados àquele homem doce, gentil, muito alto, olhos meio claros, sempre trajado numa combinação de preto e branco regular, e que jantava em nossa casa, às vezes.

O único que me tocava era a Verônica na sexta estação da via crucis. Toda de negro. O véu que deixava e não deixava ser vista. Mas eu sabia. Era Dona Dulce, a mesma que nos ensaiava para a cerimônia da coroação de Nossa Senhora, todo final de maio, e cuja filha era a protagonista desse drama da santa que vivíamos nos degraus estreitos do altar.

Umas vezes, era bem na porta de casa que ela suspendia o tecido fluido, nu e, no silêncio, o colocava contra o rosto daquele homem. Depois, voltava-o para a multidão e entoava seus agudos agudíssimos, de dar aflição, soltando aquele cântico pungente, plangente, tão dolorido e que atravessava, longamente, o quarteirão.

Aquilo ficou em mim. Naquilo eu acreditava. Era a mágica da aparição. O rosto do homem era revelado no desenrolar do pano. Sudário. Ali, eu teria sido condenada ao eterno ver, capturada pela imagem, que teve mais antecedentes nessas épocas: a presença da câmera de tio Zé e as colagens em um caderno de lições de português que me ensinaram o ver. Assim, a fotografia foi, aos poucos, batucando dentro do meu peito.

Depois, um batuque me livrou do íngreme das ladeiras e do plano das ruas. Quase um desgarrar. Começou na atração incontida pelos odores incrustados na Flora Xangô, uma “casa de ervas”, tradicional no bairro, que vendia artigos religiosos e “elementos para todo o ritual” – ficava no caminho para a missa e, era também uma sedução para os olhos. E continuou nas festas de Cosme e Damião, umas ruas pra baixo de casa, e, como pareciam só uma brincadeira, vá lá. Depois a mãe, meio contrariada, costurou um vestido branco, fortemente inspirado na estética Clara Nunes, cuja voz Madrinha reproduzia tal e qual. O pai olhava cismado. As irmãs contavam pros amigos. E se o padre viesse nos visitar?

Madrinha era irmã de meu pai, sobrou solteira, pessoa boa e que ajudou a nos criar. Muitas vezes foi ela que me escondeu da fúria de meu pai. Fora cantora da rádio em Bragança Paulista, animadinha, miúda, unhas longas e resistentes, gritando no esmalte vermelho, terninhos justos, saias curtas. Um escândalo, sentenciava vez ou outra, meu pai, de soslaio. Dizia-se “pra frente”.

Era ela que me apresentava as procissões, as cinzas da quarta-feira, os primeiros bailes e a oração a São Brás, numa versão toda especial: “São Brás, São Brás, dois pra frente, dois pra trás”, num ritmo cantadinho que me fazia rir e mais ainda engasgar. Benzia minha cabeça para tudo o que fosse patologia. Íamos à missa das dez juntas, e, atrasadas, a passos rápidos. E ministrava o Johrei, militava no Seicho-no-Ie, vendia Avon e Tupperware, queimava palmas de Santa Bárbara bentas no “domingo de ramos” a todo ameaço de temporal, clamando por Iansã a cada raio.

E não faltava às festas de Cosme e Damião. Lá, me dava um “medinho”. Era a mão da Madrinha que eu apertava, pequena – misto de interesse e aflição. Mas o de que gostávamos, mesmo, eram as balas, os doces e brinquedos distribuídos à profusão. Foram assim muitos setembros. O som dos atabaques ia correndo alto. Chegávamos e já estavam todos. Fluxo contínuo, tudo acontecendo ao mesmo tempo. Não entendia bem. Mas lembro meus olhos pousados em tudo o que se movesse, em tudo o que silenciasse.

Mais tarde, foi ela que não demorou a me acompanhar aos rituais de uma umbanda distante. “Macumba boa é macumba longe”, já me disse alguém. Lá, ela performava toda sorte de mães-pretas, curandeiras, rezadeiras, benzedeiras. Vez ou outra, ouvia vozes e desatava em profecias. Vez ou outra, batuques fora do peito e dentro dele. E fazia um peixe grelhado no limão… provavelmente, evocando uma cozinheira boa das antigas. Ao final da vida, cândida, incorporava Elis Regina e cantava de arrepiar. Que saudade!

A distância e o tempo nos perturbaram. Viajei. A “macumba” deve ter ido para ainda mais longe. Madrinha adoeceu. Nos perdemos uns dos outros. Anos depois, o corpo recluso sobre a esteira permitiria a grafia que sai de uma terra distante e pulsa nas peles e veias das pessoas daqui. Ninguém é o mesmo depois desse silêncio.

O fato é que começaram a correr, fortes, uns “Brasis”, em mim. Este, negro, das religiões de origem banto e nagô, foi um deles. Com ele, fui pensando expressões culturais e experiências diversas. Reconhecê-lo é um modo de manter vivos e livres os que fizeram a travessia da “calunga grande”.

Os episódios não passariam de dados biográficos e anedotas de vida não fossem marcantes como uma cicatriz tribal, como uma memória cravada na árvore do esquecimento. E, assim, matéria para esta minha fotografia.

Parecem, assim, existir dois modos de conviver com o ritual – que, aqui, é iniciático, mas também fotográfico. De dentro: pés no chão, saias e saiotes engomados das mulheres, a comida que sai cheirosa e pelando da cozinha, o batuque das mãos dos instrumentistas, o transe do povo de santo. De fora: gente chegando para a festa – são os abiãs. É sempre assim para quem se aproxima dele. Foi assim que meus olhos se achegaram. Depois entraram para o _xirê_, para a dança, para os espaços sagrados. Do canto do barracão assisto às festas, câmera em riste. Do centro da roda, participo dela. Das imagens, às vezes elas escapam do ver consciente – inconsciência como a do transe, para além da cena religiosa: imagens são notas que resgatam uma força ancestral, aquela que só conhece quem sabe que é preciso rezar bem o feijão fradinho para fazer um bom acarajé.