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Um Obi para a cabeça do mundo

Com uma câmera incorporada ao corpo Denise Camargo está dentro do xirê: diante de imagens inconscientes (consciente: ainda há tempo!) do mundo banto-nagô-brasileiro, alguns séculos depois que os de fora chegaram (descobrimento/invasão?) para açoitar os nossos índios, possuí-los, batizá-los como se propositalmente quisessem pôr fim à nossa alma ancestral. Diante dos seus olhos, ali está o que procurou a vida inteira: encontrar o seu outro mesmo eu, sua alma ancestral. Alguma coisa concreta que no passado unia sua mão à mão de Madrinha, quando aquela mulher definitiva para sua compreensão artístico-religiosa a levava para as festas de São Cosme e São Damião e ela, em plena infância e diante de um desconhecido silêncio, ouviu para nunca mais esquecer os alabês assentarem suas mãos sobre os atabaques. E então o mundo dos deuses e dos orixás (Exu incorporado) ali, e para sempre, estariam unidos dentro da sua cabeça no longo caminho que a levaria “de volta” para o mundo circular, o centro do xirê.

E o silêncio nagô calou em mim trata disso: desse silêncio profundo diante do desconhecido, “do tutano da palavra sagrada”, do que poderá ir do ontem ao muito além, desse corpo índio e africano que temos obrigação em reconhecer, que somos nós, sem abortar Macunaíma, sem ter medo de possuir as coisas que nos pertencem (o transe, o sacrifício, o azougue, a passagem) diante e por dentro desse mesmo país onde vivemos - e que insiste em não perceber sua verdadeira identidade - , preconceituoso, injusto, corrupto. Então a artista escolheu dedicar-se ao silêncio, queria entender a produção sobre o candomblé de fotógrafos como Pierre Verger, José Medeiros, Mario Cravo Neto. Esse, o ponto de partida. Verger consagrado babalaô, Medeiros “filho da casa” depois das imagens, Cravo Neto em busca do legba de Exu. Todos diante de um fundamento secreto, de um mundo proibido que poderá ser entregue à compreensão dos outros dependendo de como cada fotógrafo revela esse universo, cala-se para enxergar o ofício do sagrado.

Foi depois de uma conversa com Cravo Neto que Denise Camargo entendeu o que deveria fazer: “Não sou eu quem está falando. É Exu quem está falando para nós dois. Nunca antes falei assim”, disse-lhe o fotógrafo baiano. O conjunto de imagens que está em E o silêncio nagô calou em mim foi feito na Casa das Águas, em Itapevi, São Paulo e em outros lugares e países por onde a fotógrafa caminhou para buscar a si mesma como iniciada - diante da espera, da entrega, do desconhecido que está por vir, dos olhares que se cruzam e se irmanam, do silêncio que rompe o próprio silêncio. E o silêncio nagô calou em mim trata das coisas que nos pertencem, do que temos direito, do que somos nós. Trata da existência dos que não gostam de mentir, dos que assumem o próprio rosto. Dos que não têm medo de seguir adiante como possuidor de uma humanidade distinta, de uma protocélula impregnada de mitos que dançam dentro do nosso corpo/memória insistindo em nos fazer despertar.